sexta-feira, outubro 3

No início foi o Mito.



Não sei como é que a palavra se insinuou: convenhamos que vem pouco a propósito.

A transparência é aqui nostalgia: até a luz terá a cor do granito. Mas o granito é às vezes de oiro velho, e outras azulado, como o luar escasso que nesta noite de Outono escorre dos telhados.
Quando o sol, mesmo arrefecido, incide nos vidros, as mil e uma clarabóias e trapeiras e mirantes da cidade enchem o crepúsculo de brilhos – o Porto parece então pintado por Vieira da Silva: é mais imaginário que real.


Para as bandas de S. Lázaro, as ruas estão coalhadas de silêncio. Os passos de quem regressa tarde a casa são raros, até os mais leves se ouvem à distância. Na noite alta, o repuxo do jardim tem a nitidez de um coração muito jovem. Fora as magnólias, não há árvore com folha. Os bancos estão desertos – os trolhazitos que por aqui se aquecem ao sol, à hora do almoço, devem ter adormecido nalgum canto dessas casas em vias de construção, que há um pouco por toda a parte. Dormem enrolados no friinho que principia a rondar. Os cafés fecham as últimas portas. Saem os retardatários um pouco aos bandos, quase todos jovens. Barulhentos, sem pressa, encaminham-se para a Batalha. Um automóvel, rápido; outro; outro ainda. Um dos moços assobia. As palavras da canção ecoam-me na cabeça:

If you're going to San Francisco
be sure to wear some flowers in your hair…

Param a olhar os cartazes de um cinema.
São realmente muito novos e, como poldrinhos amedrontados, juntam-se, empurram-se uns aos outros, aos berros:

- Não viste nada, pá, quem viu fui eu! – É um adolescente de camisola alta, os cabelos à Shelley, as calças cingidas. Que teria ele visto, que deixou de assobiar? A Mónica Vitti entrar no Hotel da Batalha? O rei Édipo atravessar a praça pela mão de Antígona? Os Beatles empoleirados na estátua de D. Pedro V?
Ou o rosto que eu procurava na noite – o rosto sem feições conhecidas de Domingos Peres das Eiras, escoando-se, solerte, pela Rua de Cimo de Vila? Sigo-lhe a sombra, distanciado, e logo lhe perco o rasto. Talvez tenha entrado numa daquelas casas estreitas e encardidas, de letreiros pendurados no portal, anunciando «Dormidas» em letras vermelhas. De uma ou outra janela exígua, uma luz bafienta escapa-se, a custo, entre as portadas espessas. Inesperadamente, ouvem-se uns risos meio aloucados de rapariga, o ranger de uma porta que hesitou em abrir-se , logo uma voz muito frágil, rasteirinha: - Fica ainda um pouco, Miguel. – Eis a Rua Chã, a Rua Chã das Eiras, como outrora se dizia. Aqui, dentro de portas, a mais triste das máscaras de Eros fascinava ainda alguns solitários. Dois soldados olhavam as vidraças foscas. Um velhote aproximou-se a cantarolar, pediu-me um cigarro. – Contente, hem?! Pois..., a vida são dois dias. – Ou menos, homem. E donde tira você a alegria? – Olhe, do sol... – O velhote fitou-me. Não posso jurar que sorrisse, mas os seus olhos brilhavam no escuro. Ainda me ocorreu perguntar-lhe: - E quando chove? E olhe que chove muito no Porto! – Mas fiquei calado. Um homem que arranca alegria do sol tem direito a ser respeitado. O velho sumiu-se por uma viela abrindo em arco. A via-se já de flanco. No empedrado do terreiro, os passos crepitavam. Só o barulho das motorizadas conseguia atravessar tanto silêncio. As colinas de Gaia estão cheias de luzes coadas por uma neblina rala que jamais se extingue. Não há nenhuma cidade, assim, que subitamente não se torne secreta.
No rio, junto ao cais, distinguiam-se dois ou três barcos de carga, no meio do tremor mercantil dos anúncios luminosos. No negrume dos telhados, quebrado nas ruas mais próximas quase só pela brancura de uns lençóis a secar às janelas, rompem as agulhas das igrejas – lancinantes. Quatro ou cinco mimosas trepam miudinhas. É outono, creio que já o disse: a terra cheira bem. No Carmo já deve haver violetas à venda. Preciso passar por lá amanhã: tenho a quem enviar um ramo. A noite embaciara à medida que crescera, mas vislumbrava-se ainda, lá ao fundo, uma torre esgalgada. O assobio recomeçou, não sei onde, talvez na Rua Escura ou na de S. Sebastião. Mas agora era outra a música que tinha dentro de mim:


Para a minha alma eu queria uma
torre como esta,
assim alta,
assim de névoa acompanhando o rio.



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